Dolarizando a Argentina: uma história de desgoverno e inflação
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Javier Milei, atualmente na ponta das pesquisas para presidente do país, aparece na campanha inúmeras vezes com uma motosserra e uma nota de dólar enorme. Com um posicionamento de extrema direita, defende pautas polêmicas, como a legalização da venda de armas e órgãos, além de não concordar com o aborto ou discussões sobre gênero nas escolas. Estes assuntos, por mais que sejam importantes, não são o foco do artigo de hoje, e sim as propostas econômicas do candidato como o fechamento do Banco Central, austeridade fiscal e a dolarização da economia. Apesar de ter vencido a última Copa do Mundo, o país já deu oito calotes na dívida externa, vive um cenário de inflação descontrolada, baixo crescimento e altíssimos gastos públicos. Em resumo, um país quebrado. E como diz o famoso economista Simon Kuznets, existem 4 tipos de países no mundo, os desenvolvidos, os subdesenvolvidos, o Japão e a Argentina. O artigo de hoje é um pouco mais longo (e técnico), mas vale a pena.
Inflação da Argentina atinge 124% ao ano em Agosto e país sofre para conter a desvalorização do peso argentino
Fonte: Instituto Nacional de Estadística y Censos (INDEC)
Um pouco de história
Surpreenda-se, mas em 1895/1896 a Argentina foi o país com maior PIB per capita do mundo, ou seja, o mais rico do mundo. Fruto de uma política liberal de governantes à época (apoio aos empresários e estado fora da economia) e do fluxo de imigrantes, o país experimentou uma era áurea, sendo considerada por muitos como a Europa da América do Sul. Em 1930, o país sofre um golpe militar que muda toda a constituição e entre idas e vindas surge a figura de Juan Domingo Péron, dando início ao Peronismo em 1945. A partir deste momento a propriedade privada já não era mais respeitada e o Estado deveria ser o mais presente na economia, aumentando salários desgovernadamente e elevando significativamente os gastos públicos. E assim como todos os governos que adotaram estas medidas, o fim foi o mesmo, crises econômicas. E quem paga a conta? Os mais pobres. E o mais impressionante é ver um país rico e com muitos recursos naturais, incluindo petróleo e terras produtivas (um dos melhores trigos do mundo por exemplo) chegou à estagflação e dívida descontrolada. Desculpe o palavreado, mas alguém sempre faz merda. Sempre tem um culpado e não são seres externos e nem a mandioca, como a presidenta Dilma dizia.
“A born leader of men, [Perón] had all the qualities needed to appeal to the masses—good looks, personal charm, eloquence, power of oratory, an extraordinary understanding of mass psychology and, what is rare in a dictator, a sense of humor. He created in Argentina a movement that bore his name, whose strength lay in the urbanized working class, which remains the strongest political force in the country.” Evita Perón
A descrição acima mostra muito bem o que é o populismo político. Um ditador que ao mesmo era carismático e trazia conforto à massa, trazendo para perto a força da classe operária. Para quem leu meu último texto, até parece um pouco dos ideais do Manifesto Comunista... Transformar a classe operária como uma força política. A diferença é que no Manifesto a ideia vinha de baixo e não de cima, e o Estado mais uma vez se deturpou. E a realidade é, isso vende, populismo. Depois de tanto tempo, surgiram alguns que tentaram fugir do Estadismo argentino. Macri não teve muito sucesso, afinal é muito difícil um empresário transitar no meio político e talvez sua austeridade emplacada tenha sido demasiada. Agora, talvez no desespero do povo argentino, surge o disruptivo Javier Milei, uma última tentativa pelo desapreço que a sociedade tomou da democracia, do Estado e da velha política. Não funciona mais, então vamos tentar o diferente.
Austeridade Fiscal
O tema, que a esquerda não gosta nem de chegar perto, foi assunto importante no Brasil ao longo dos 4 anos de Bolsonaro e uma das bandeiras de Milei, mas também temos que tomar cuidado. O setor público é muito presente na economia em países como Brasil e Argentina com seus gastos diretos e indiretos. Ou seja, cortar os gastos muito abruptamente, traz naturalmente uma queda no PIB também abrupta. Segundo o FMI, a Argentina possui 37,83% (dados de 2021) de gastos públicos em percentual do PIB. Ou seja, deve-se tomar cuidado com medidas muito forçadas em relação ao setor público, pois infelizmente reduzir o salário do político em 50% (por mais que eu gostaria) pode ser mais danoso para a sociedade como um todo.
Dolarização da Economia
A dolarização é um assunto bem interessante e nada trivial. Poucos países relevantes na economia mundial tentaram o sistema e portanto, temos uma amostragem pequena para estudos que provem ao certo a sua eficácia. Além disso, cada caso é um caso, complicando ainda mais a comparação. E como funciona este processo? Basicamente, o Banco Central retiraria todos os pesos argentinos de circulação, transformando em dólares. O problema disso? A Argentina precisaria de dólares para realizá-lo, e hoje possui reservas líquidas estimadas de 10 bilhões de dólares, ou seja, em default técnico. Como disse o ex-diretor do FMI Alejandro Werner, “Dolarizar sem dólares é como dizer que toda a população use Nike, sem produzir os tênis e sem dinheiro para comprar” (haha). Mas claro, existe solução, tomar mais empréstimos internacionais... O problema disso? Seria caro, e só da expectativa da dolarização da economia (sem reservas cambiais), o peso argentino poderia desvalorizar ainda mais, e piorar ainda mais a hiperinflação*.
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*Isto porque os produtos importados dependem da taxa de câmbio. Se o dólar está R$5,00, a gasolina importada fica mais cara do que quando o dólar está R$4,00, se o preço da gasolina se mantiver o mesmo em dólares. Ou seja, quando o Banco Central decide colocar mais dinheiro em circulação na economia, reduzindo os juros (mais dinheiro, menos custa o dinheiro) ele também induz uma taxa de câmbio mais alta, (mais dinheiro, o dinheiro vale menos em relação ao dólar) gerando assim um aumento de preços (mais dinheiro, mais pessoas compram, maiores preços).
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E quais são os benefícios e malefícios de se dolarizar? O Equador em 2000 adotou o dólar como moeda oficial. Apesar do crescimento irregular, a inflação foi enfim controlada. Ou seja, um primeiro benefício seria o controle dos preços. Isto ocorre por algumas razões. A primeira, com o governo impedido de imprimir mais dinheiro, dado que adotou o dólar e o único responsável por emiti-lo é os EUA, não há uma potencialização da inflação. Em segundo lugar, não existiria mais câmbio, ou seja, desvalorizações da moeda não ocorreriam mais e como o dólar é uma moeda estável, não há razão para a carne valer US$100 em um mês e US$110 no outro, mas hoje, existem razões para a carne valer $1000 pesos em um mês e $3000 no outro, afinal, se perde a noção de qual o real valor dinheiro em cenários de aumento dos preços. Um segundo benefício, vem do investimento externo. Afinal, você investiria hoje na Argentina? Sabendo que no próximo mês o dinheiro que você transformou em pesos poderá valer metade? Claro que não.
E quais os malefícios? O principal deles, é a perda do controle da política monetária. Praticamente não existiria mais Banco Central argentino e os juros seriam definidos pelos EUA (+ um prêmio de risco). Ou seja, se os preços estiverem subindo na Argentina e os EUA reduzirem os juros por alguma razão, só piorará o caso na Argentina. Em resumo, o país se torna totalmente depende dos EUA, não podendo utilizar de medidas para estimular ou desestimular sua economia. Em segundo lugar, o câmbio argentino deixa de existir, ou seja, sua política externa hoje usada para atrair dólares ao país, também sai de seu controle (sim, as vezes é bom não poder ir para Disney, para o todo é claro). Em terceiro, a “senhoriagem”, que seria o rendimento que o governo recebe ao comprar títulos públicos (ou privados) ao imprimir dinheiro e introduzir na economia.
Conclusão
Em resumo, troca-se a autonomia e soberania do país por uma estabilidade inflacionária, ou seja, por uma maior confiança na moeda utilizada. A questão é, hoje a economia argentina já é parcialmente dolarizada. Li recentemente que o Mercado Livre no país paga parte do salário em pesos e parte em dólares. Casas de alta renda são negociadas estritamente em dólares e com certeza o mercado financeiro recebe seu salário também na moeda americana. A inflação assola o país e os dados são manipulados pelos órgãos, sem saber ao certo qual o real valor do peso argentino. A dolarização, por mais que tenham custos, parece não ser uma das piores ideias do mundo para o caso argentino, mas merece atenção. Além da transição dever ser feita de maneira coordenada, mantendo a população abastecida de reservas monetárias, o Banco Central também precisa ter reservas para conter quaisquer movimentos bruscos. E não apenas o BC deve trabalhar, o governo também precisa arrumar a casa, reduzindo gastos públicos e mantendo o cenário fiscal agradável, senão a crise apenas se agravará.
‘Transição
é indolor’, diz pai da dolarização no Equador | VEJA (abril.com.br)
Inflação Argentina
Paradoxo Argentino
O que é o peronismo e onde se encaixa o kirchnerismo? Sociólogo argentino explica - Sul 21
Base de dados pib per capita histórico – Maddison Project
Dados gastos públicos - FMI
Public Finances in Modern History - Government expenditure, percent of GDP (imf.org)
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